Se uma câmera gravasse nossos instantes mais bonitos eu colocava essa música pra ser tema de nós dois. Recados e fotos espalhados pelo teu quarto. A pia cheia de pratos e a cama desarrumada dizendo que estávamos lá.
Às vezes me falta palavra para descrever nossos nós,
às vezes me falta ar e me sobram suspiros, mas não tem como não expressar, nem que seja por um sorriso, o quanto é bom estarmos juntos.
Teria gravado em nosso clipe nossas pazes depois das brigas. Sei que cheirar meu sovaco e me matar de cócegas não são coisas tão românticas assim, mas são o seu jeito em mim.
Gravaria também todas às vezes que você reclama quando eu te peço "vem mais pra cá" na cama e mesmo assim você vem sorrindo olhando pra mim, fazendo de conta que não gosta de sair do seu canto e vir para o meu.
Não estamos construindo um sonho romântico, estamos construindo uma realidade nossa, na qual o mundo é ali onde vivemos e as coisas ao nosso redor são adereços que escolhemos ou não acrescentar. Estamos, a nosso modo, atando nossos nós.
O tato é, talvez, o sentido sobre o qual menos se tenha falado. Há uma filosofia dos olhos, uma filosofia do ouvido, uma filosofia da boca. Mas desconheço uma meditação filosófica sobre o tocar. E, no entanto, a pele é lugar de tantas alegrias ...
Onde foram parar as tardes de fazer inveja às cerejas?
Quando lembro daqueles olhos não tenho mais certeza se eram esses mesmos olhos que minha lembrança se lembra.
Há uma fantasia que envolve minha recordação e transforma tudo aquilo que foi vivido numa espécie de sentimento enevoado por uma necessidade de perfeição.
Não lembro a última vez que o vi, nem nosso último beijo, nem o seu último suspiro em meus cabelos. Lembro apenas do seu cheiro, que inconstante, vagueia por aí na intenção maquiavélica de não me deixar esquecer. Mas quando me ponho a recordar acabo achando tudo aquilo mais bonito do que realmente foi.
Tento voltar naquele sábado que o encontrei depois de uma ausência de três meses.
Será que realmente vivi aquele dia ou acabei inventando pra mim mesma uma situação que seja digna de ser lembrada por toda a minha vida?
Minha teoria é a seguinte: quando o amor acaba, ele fica mais bonito.
Mais bonito porque nos resta apenas a lembrança do objeto amado e na lembrança a gente esquece das falhas, acabamos por maquiar as pequenas cicatrizes e guardamos apenas aqueles instantes que julgamos fundamentais para deixar o amor bonito e digno de ser lembrado.
Já tive um amor perfeito e bem vivido, mas hoje, quando me recordo, acabo achando que ele foi mais do que era.
Não sei até que ponto isso é bom ou ruim.
Pelo lado positivo podemos achar que pelo menos vivi um amor de verdade, daqueles de filme onde eu fugiria (e quase fugi) de moto em uma viagem rumo ao sul da América.
Um amor daquele que tem cheiro e trilha sonora de Cássia Eller cantando No Recreio.
Sempre há um sorriso de canto de boca quando ouço a parte em que Eu só queria me casar
Com alguém igual a você...
Mas sejamos coerentes.
Pelo lado negativo toda essa ilusão de grande amor acaba por influenciar na construção de um referencial que nem sei mais se é válido e confiável, portanto é claro que existe alguém melhor do que você sim, se não existisse eu não teria me afastado.
Não sei onde foi parar as tardes de fazer invejas às cerejas, sei apenas que não tem como esquecer o fato delas, um dia, terem existido e fico feliz por isso, mesmo que isso tenha sido apenas invenção do meu coração.
Há momentos na vida em que aquilo que lembramos é apenas o resto do que fomos.
Bem que Drummond falou que deveríamos aprender a arte de (con)viver.
Repara... quantas vezes você abre mão daquilo que você é para por um sorriso no lábio alheio?
Quantas vezes você ligou pedindo desculpas por algo que não vez apenas pelo simples medo de não poder errar outra vez?
Todas as relações se baseiam em atos de confiança.
Mas até quando podemos olhar para teus olhos e neles encontrar resquícios de verdades?
Como se pode construir sentimentos?
Talvez gostar seja, realmente, um grande erro.
Porque quando gostamos lançamos ao outro qualidades que nem sempre eles carregam.
Não conseguimos evitar, sempre fazemos assim.
Não nos contentamos, queremos mais, exigimos mais, pedimos mais apenas por acharmos que aquela pessoa é mais do que aquilo que ela nos mostra.
Ainda luto comigo mesma para não afundar no niilismo de que esse mundo está fadado à relações mercantilistas.
Talvez ainda tenha algo de humano em nós, em mim, em você.
Talvez ainda nos reste a possibilidade de acreditar que se pode confiar,
que se pode cativar, que se pode amar incondicionalmente.
Expectativas nos roubam a possibilidade da surpresa e fazemos de nossa vida uma contínua escola onde aprendemos artifícios psicológicos para tentar prever, de algum modo, certas atitudes, interpretando outras e transformando isso tudo em um arsenal de tranqueiras que definam algo do ser humano.
Sou humana.
Sei de meus desejos físicos, sei como minhas emoções me dominam e até que pondo minha racionalidade reina intelectualmente sobre meu corpo.
Sei que há momentos em que olho no espelho e não me reconheço,
procuro lembranças de meu próprio rosto e apenas encontro diante de mim uma mulher desconhecida.
É estranho mudar.
Não é estranho mudar quando a gente diz que vai mudar. Isso não é estranho não.
É estranho mudar quando a mudança nos chega como vento que invade pela janela e derruba qualquer coisa de qualquer canto. É estranho se deparar de repente com uma vida que você não lutou pra ter, uma vida que veio surgindo como medusas dançando no mar.
Você fica bobo olhando, tenta de todas as maneiras compreender como água pode ter vida e como é bonito ela dançando tão perto... tão perto... tão perto que quando te toca, te machuca.
Resta-nos o medo de se machucar de novo e a sensação incômoda de que ali não é tua casa.
De que aquela não é você e de que essa não era a vida que era pra ser.