28 de dezembro de 2010

#FicaDica 2

, , 2






Pois então você leu num jornal que foi lançado Se um viajante numa noite de inverno, o novo livro de Italo Calvino, que não publicava nada havia vários anos. Passou por uma livraria e comprou o volume. Fez bem.

Já logo na vitrine da livraria, identificou a capa com o título que procurava. Seguindo essa pista visual, você abriu caminho na loja, através da densa barreira dos Livros Que Você Não Leu que, das mesas e prateleiras, olham-no de esguelha tentando intimidá-lo. Mas você sabe que não deve deixar-se impressionar, pois estão distribuídos por hectares e mais hectares os Livros Cuja Leitura É Dispensável, os Livros Para Outros Usos Que Não a Leitura, os Livros Já Lidos Sem Que Seja Necessário Abri-los, pertencentes que são à categoria dos Livros Já Lidos Antes Mesmo De Terem Sido Escritos. Assim, após você ter superado a primeira linha de defesas, eis que cai sobre sua pessoa a infantaria dos Livros Que, Se Você Tivesse Mais Vidas Para Viver, Certamente Leria De Boa Vontade, Mas Infelizmente Os Dias Que Lhe Restam Para Viver Não São Tantos Assim. Com movimentos rápidos, você os deixa para trás e atravessa as falanges dos Livros Que Tem A Intenção De Ler Mas Antes Deve Ler Outros, dos Livros Demasiado Caros Que Podem Esperar Para Ser Comprados Quando Forem Revendidos Pela Metade Do Preço, dos Livros Idem Quando Forem Reeditados Em Coleções De Bolso, dos Livros Que Poderia Pedir Emprestados A Alguém, dos Livros Que Todo Mundo Leu E É Como Se Você Também Os Tivesse Lido. Esquivando-se de tais assuntos, você alcança as torres do fortim, onde ainda resistem

os Livros Que Há Tempos Você Pretende Ler,

os Livros Que Procurou Durante Vários Anos Sem Ter Encontrado,

os Livros Que Dizem Respeito A Algo Que O Ocupa Neste Momento,

os Livros Que Deseja Adquirir Para Ter Por Perto Em Qualquer Circunstância,

os Livros Que Gostaria De Separar Para Ler Neste Verão,

os Livros Que Lhe Faltam Para Colocar Ao Lado De Outros Em Sua Estante,

os Livros Que De Repente Lhe Inspiram Uma Curiosidade Frenética E Não Claramente Justificada.

Bom, foi enfim possível reduzir o número ilimitado de forças em campo a um conjunto certamente muito grande, conquanto calculável num número finito, embora esse alívio relativo seja solapado pelas emboscadas dos Livros Que Você Leu Há Muito Tempo E Que Já Seria Hora De Reler e dos Livros Que Sempre Fingiu Ter Lido E Que Já Seria Hora De Decidir-Se A Lê-Los Realmente.

Você se livra com rápidos ziguezagues e, de um salto, penetra na cidadela das Novidades Em Que o Autor Ou O Tema São Atraentes. Uma vez no interior dessa fortaleza, pode abrir brechas entre as fileiras de defensores e dividi-los em Novidades De Autores Ou Tema Já Conhecidos (por você ou por todos) e novidades De Autores Ou Temas Completamente Desconhecidos (ao menos por você) e definir a atração que eles exercem sobre você segundo suas necessidades e desejos de novidade e não-novidade (da novidade que você busca no não-novo e do não-novo que você busca na novidade).

Tudo isso para dizer que, após ter percorrido rapidamente com o olhar os títulos dos volumes expostos na livraria, você se dirigiu a uma pilha de exemplares recém-impressos de Se um viajante numa noite de inverno, pegou um e o levou ao caixa para ver reconhecido o seu direito de possuí-lo.
Você ainda lançou sobre os livros em redor um olhar desgarrado (ou melhor: os livros é que o olharam com um olhar perdido como o dos cães nos cercados do canil municipal quando vêem um ex-companheiro ser levado na coleira pelo dono que veio resgatá-lo) e, enfim, saiu.



Calvino, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Cia das Letras, 1999, pp- 11-14 (Se una notte d'inverno um viaggiatore)


# Vale dizer que esse texto não é meu... Ele é um trecho do primeiro capítulo desse livro que indico... Quem me dera ter tal criatividade Gisele! rsrsrs
=)
You Might Also Like
Postar um comentário

2 comments

2 de janeiro de 2011 às 23:36

Aha! Bacana. Vou procura-lo =D

8 de janeiro de 2011 às 09:46

Viajou?

Abraços!

Samuel.